ARTIGO APRESENTADO NA IX SEMANA DE FILOSOFIA DE MOSSORÓ/2013:
FILOSOFIA COM CRIANÇAS: ESTRATÉGIA
PARA O PENSAR BEM INFANTIL
Maria Reilta Dantas Cirino[1]
RESUMO
As
inter-relações históricas nas quais se insere a criança ensejam conceitos,
formas de intervenções de aprender e de educar. Os estudiosos da infância a concebem,
como sujeito de direitos, com especificidades próprias e com capacidade de
aprender. As crianças são, por natureza, questionadoras, o que as
tornam capazes do diálogo, do desabrochar para o conhecimento, sendo, pois,
possível o exercício da discussão; pensam sobre o mundo; usam a imaginação e a
criatividade para responder perguntas. Tais perguntas quando incentivadas podem
potencializar essa capacidade natural para o filosofar. A Filosofia
compreendida como um fazer, apresenta-se como oportunidade de
construção de uma educação para o pensar. O artigo tem como objetivo discutir
as possibilidades de se fazer filosofia para crianças através da metodologia de
Comunidades de Investigação proposta por Lipman.
PALAVRAS-CHAVE: Filosofia. Lipman. Pensar. Comunidades
de Investigação.
Educação e Infância
Mediante
a compreensão de que a concepção de homem e de sociedade elaborada em cada
contexto histórico permeiam e determinam todas as formas de elaborações que são
assumidas dentro da história – a organização social, política e econômica –
definindo o tipo de homem que se deseja e precisa formar para cada modelo de
organização social, é que se insere a educação, entendida como ação social com
intencionalidade e com possibilidades – em um movimento dialético − de inserção, manutenção e
transformação de indivíduos e da sociedade.
É nesse
contexto de inter-relações históricas, políticas e sociais que se insere a
criança, a infância e a educação infantil, ensejando conceitos, formas de
intervenções e funções de aprender e de educar, assumidas de diferentes
maneiras ao longo da história, definindo percepções e modalidades de
atendimento junto à criança e sua educação. Esses aspectos não podem ser
discutidos de forma isolada, requerem para sua compreensão, a contextualização
no quadro mais amplo dos acontecimentos históricos e sociais. Dessa forma, faremos
referência, a seguir, a alguns filósofos e educadores que contribuíram com a
conceituação de formas de ver e pensar a criança e sua educação em diferentes
épocas.
De
acordo com Luzuriaga (1997) Platão já se referia à educação da infância,
afirmando que essa se iniciava ainda no útero materno. Defendia que a criança
deveria até os sete anos ser educada no contexto familiar através de jogos
educativos, sendo os mesmos compartilhados por meninos e meninas. Para Platão,
a educação tem como fim último, a formação moral do homem para que esse venha a
exercer com justiça o seu papel dentro do Estado. Também, Aristóteles, defendia
a educação inicial - até os cinco anos – dentro da família, a qual deveria
instruir a criança nas regras de higiene e “... submetê-las ao endurecimento...”
para que o corpo pudesse obedecer às ordens do espírito. (op. cit.p. 57).
No pensamento de Santo Agostinho, a criança é
colocada como criação divina, porém, com natureza corrompida – egoísta e
cobiçosa. Seu pensamento era contrário à morte e à barbárie a que eram
submetidas crianças naquela época, recomendando que desde muito cedo seja
necessário que a criança tenha a vontade educada para que sua alma não se
perca. Esse filósofo marca o período medieval em que a educação esteve
fortemente submetida aos preceitos dogmáticos do cristianismo. (MANACORDA,
2001).
Comenius considera o
conhecimento decorrente da experiência e defendia uma escola para todos –
pobres e ricos, homens e mulheres − identifica que o objetivo da educação é a
humanização do homem, que não atinge sua condição humana sem a educação, assim
afirma: “... a todos os que nasceram homens a educação é necessária, para que
sejam homens e não animais ferozes ...”. (COMENIUS, 2002, p. 76). Essa
formação, de acordo com Comenius, deve ser feita nas instituições escolares, o
mais cedo possível e de forma sedutora e prazerosa, pois que “A natureza de
todas as coisas que nascem é tal que se plasmam e se moldam com grande
facilidade quando ainda são tenras, ao passo que, endurecidas, se recusam a
obedecer.” (op. cit. p. 78).
Um
dos pensadores mais influentes que contribuiu para o reconhecimento e
valorização da infância foi Jean-Jacques Rousseau. Primeiro a reconhecer a
infância como idade distinta, defendendo o respeito à natureza da criança. Os
princípios de sua educação são: a natureza como essencial ao homem; a liberdade
regida pelas necessidades; e a atividade, pela qual ocorrerá a aprendizagem
mediante a experiência direta com os objetos. “A infância tem maneiras de ver,
de pensar, de sentir, que são próprias.” (LUZURIAGA, 1977,
p.
166). Para ele a educação não é externa
ao homem, mas antes lhe é intrínseca e deve ser realizada em completa liberdade
e em contato direto com a natureza, tirando dessa os instrumentos para o
aprendizado. Nesse sentido afirma: “Ponde vosso aluno atento aos fenômenos da
natureza, depressa o fareis curioso; para alimentar-lhe a curiosidade, não vos
apressais jamais em
satisfazê-la. Ponde-lhe ao alcance as questões e deixai-o
resolvê-las.” (op.cit. p.166).
Para
Rousseau, a verdadeira educação é aquela que torna o homem melhor como pessoa e
em relação aos seus semelhantes e à natureza. Defendia a individualidade da
criança, o tratamento carinhoso – mas não permissivo – e métodos que alimentem
a chama criativa da natureza infantil. Assim se expressa: “Na
ordem natural, sendo os homens todos iguais, sua vocação comum é a condição de
homem, e quem quer que seja bem educado para tal condição não pode preencher
mal as outras relacionadas com ela.” (ROUSSEAU, 1999, p. 14).
Partindo do princípio de que a educação deveria ser um
prolongamento da vida, Celestin Freinet, em meados do século XX e até os dias
atuais, vai contribuir com a educação da criança pequena. Para Freinet, a
educação das crianças deveria respeitar sua espontaneidade, seus ritmos e sua
autenticidade. Sua metodologia envolve uma série de estratégias, tais como:
aulas-passeio, o desenho e texto livre, o jornal escolar, a correspondência
interescolar, o livro da vida etc. (OLIVEIRA, 2002).
Esses
são alguns dos estudiosos, embora suas propostas tenham aspectos que as
diferenciam, que contribuíram para, dentro de um processo histórico e no
contexto atual, a criança seja vista como sujeito de direitos, como um ser em
desenvolvimento, diferente do adulto, com especificidades e necessidades
próprias: vulneráveis (dependem do adulto em vários aspectos), capacidade de
aprender (desde que lhe sejam dadas as condições adequadas) e globalidade (as
crianças estão “inteiras” em todos os momentos – aspectos afetivos, cognitivos
e motores). (ZABALZA, 1998). Notadamente, em um contexto mais atual,
destacam-se os trabalhos de Piaget, Vigotsky e Wallon como determinantes para
essa compreensão.
Os três autores observaram as
crianças, desenvolveram procedimentos de caráter clínico e experimental,
levantaram hipóteses, escreveram relatórios, textos, argumentações. Elaboraram
teorias. Falaram da inteligência, do jogo, do pensamento e da linguagem, dos
afetos, da representação, de imaginação, da consciência. (SMOLKA, 2002, p. 10).
As contribuições de Jean
Piaget centram-se na compreensão do sujeito epistêmico, enfatizando quatro
fatores como sendo responsáveis pela psicogênese do intelecto infantil: o fator
biológico – crescimento orgânico e a maturação do sistema nervoso; o exercício
e a experiência física – adquiridos na ação empreendida sobre os objetos; as
interações e transmissões sociais – que se dão através, basicamente, da
linguagem e da educação; e o fator de equilibração das ações – movimento
espiral de assimilação e acomodação das ações cognitivas (auto regulação).
(PIAGET, 2006).
De acordo com Manacorda
(2001, p. 327), Piaget considera que a “... a inteligência nasce da ação do
sujeito [...] sobre os objetos. [...] não é pré-formada nem nos objetos nem no
sujeito, mas é construída pelo sujeito na interação com a realidade ...” e, de
acordo com Cambi (1999, p. 610) no pensamento piagetiano,
...
a mente infantil é caracterizada por uma inteligência abstrata, que parte de
comportamentos animistas e subjetivistas, mas descobre e se adapta,
gradativamente, à objetividade e a um uso formal cada vez mais abstrato dos
conceitos lógicos, regulando o próprio processo de desenvolvimento através dos
princípios biológicos da ‘assimilação’ e da ‘acomodação’.
Na visão de Cambi (1999,
p. 611), Piaget inverte a ordem dos procedimentos do processo do conhecimento
“... indo da experiência ao conceito e não vice-versa.”
Piaget observou que, ao
longo da vida, existem formas diferentes de interagir com o ambiente nas
diversas faixas etárias. A essas formas diversas de pensar e agir denominou
estágios ou períodos, afirmando que a cada faixa etária correspondem
determinados tipos de aquisições mentais e de organização dessas aquisições,
condicionando a atuação da criança aos desafios que recebe. Cada aquisição
anuncia em parte as aquisições posteriores.
Nomeou os estágios,
respectivamente, como: sensório-motor (0 – 2 anos); o pré – operatório (3-7 anos); o período das operações concretas
(7 – 11/12 anos), e por último, o período das operações formais (11 – 14 anos
em diante). (PIAGET, 2006).
Com base nessas colocações e também no posicionamento de Piaget (2006),
constatamos que, a criança, à medida que amadurece física
e psicologicamente, que é estimulada pelo ambiente físico e social, irá
construindo e evoluindo na sua inteligência. Nessa perspectiva, a criança é
vista como agente de seu próprio desenvolvimento, construindo-o a partir de
quatro fatores relacionados ao desenvolvimento cognitivo: maturação,
experiência ativa, interação social e uma sucessão geral de equilíbrio. Piaget
considerou cada um desses fatores e suas interações como condições necessárias
para o desenvolvimento cognitivo, mas nenhum deles sozinho como suficiente para
assegurá-lo. A dinâmica e coordenação dentro e entre os estágios de
desenvolvimento é função desses fatores e de suas interações. (PIAGET, 2006).
Piaget e Inhelder (2006)
advertem para o fato de que: “A equilibração por auto-regulação constitui [...]
o processo formador das estruturas que descrevemos e cuja constituição a
psicologia da criança nos permite seguir passo a passo, não no abstrato, mas na
dialética viva e vivida dos sujeitos ...”. (PIAGET; INHELDER, 2006, p. 134).
O
interesse de Vigotsky e seus colaboradores é descrever e especificar os aspectos
especificamente humanos, demonstrar como essas características se formam ao
longo da história e desenvolvimento do indivíduo, dessa forma, embora reconheça
as contribuições de modelos anteriores, critica-os (Kohler, K. Buhler, C.
Buhler, Shapiro e Gerke, Guillaume e Meyerson), pois que estudam o uso de
instrumentos isolados do uso de signos, caracterizados como fruto do intelecto
puro e não como um produto da história do desenvolvimento do sujeito, assim, o
comportamento adaptativo e a atividade de uso de signos nas crianças pequenas
são tratados por esses autores separadamente. Vigotsky acredita que a unidade
dialética entre a inteligência prática e o uso de signos constitui a essência
no comportamento humano complexo e atribui à atividade simbólica uma função
organizadora específica que invade o processo de uso de instrumentos e produz
novas formas de comportamento. (VIGOTSKY, 2003).
Vigotsky considera que o
momento de maior significado no curso do desenvolvimento intelectual e que dá
origem às formas tipicamente humanas é quando a fala e a atividade prática se
encontram. Quando a fala e o uso de instrumentos são incorporados a qualquer
ação, esta se transforma e se organizam novas formas/linhas de ação, as
crianças agem e falam na tentativa de atingir seus objetivos. Antes de
controlar o próprio comportamento, a criança controla o ambiente com a ajuda da
fala, produzindo novas relações com o ambiente e uma nova organização de seu
comportamento. Essas são as formas caracteristicamente humanas que produzem
mais tarde o intelecto e constitui a base do trabalho produtivo, ou seja, o ser
humano constrói uma forma diferenciada da dos animais no uso de instrumentos
com o auxílio da fala.
As ideias de Vigotsky, em
sua teoria sociointeracionista, ressaltam o papel do ambiente social e cultural
em que a criança está inserida, concebendo o desenvolvimento como um processo
psicológico de internalização e reconstrução do patrimônio sociocultural,
elaborado nas trocas (mediações) entre o sujeito, o outro e o objeto social de
conhecimento, originando-se, assim, as funções mentais superiores. Nessa
perspectiva, o desenvolvimento infantil deve ser encarado de forma prospectiva,
identificando dois níveis de desenvolvimento que devem subsidiar a elaboração
da intervenção educativa: nível de desenvolvimento real – conquistas já
consolidadas pela criança; nível de desenvolvimento potencial – refere-se
àquelas ações não consolidadas pela criança, podendo ser desenvolvidas com a
ajuda de terceiros e a zona de desenvolvimento proximal – entre os dois níveis
– que é caracterizada por Vigotsky como o espaço privilegiado para intervenção
pedagógica. (VIGOTSKY, 2005).
Dentro das intervenções culturais, Vigotsky,
destaca especialmente o papel da linguagem, evidenciando que antes de constituir-se
como função do sujeito falante, ela é uma produção dos homens e uma prática
social, exercendo um papel central no desenvolvimento cognitivo infantil,
sistematizando suas experiências e reorganizando os processos mentais, sendo
que pensamento e linguagem são processos interdependentes. (VIGOTSKY, 2005).
Evidenciando o papel
consubstancial da linguagem, Vigotsky (2005, p. 38), afirma:
... a capacitação especificamente
humana para a linguagem habilita as crianças a providenciarem instrumentos auxiliares
na solução de tarefas difíceis, a superar a ação impulsiva, a planejar uma
solução para um problema antes de sua execução e a controlar seu próprio
comportamento. Signos e palavras constituem para as crianças, primeiro e acima
de tudo, um meio de contato social com outras pessoas. As funções cognitivas e
comunicativas da linguagem tornam-se, então, a base de uma forma nova e
superior de atividade nas crianças, distinguindo-as dos animais.
A apropriação de signos
pelo indivíduo ocorre na interação com o outro envolvendo a história individual
e social dos sujeitos. Nessa perspectiva, não é possível que a criança tenha
acesso sozinha aos bens e aos saberes produzidos socialmente, essa emancipação
acontecerá através de um princípio contínuo de interação em uma relação mediada
pelo outro mais experiente. (FONTANA;
CRUZ, 1997; VIGOTSKY, 2005).
As ideias de Henri
Wallon, que também é interacionista, partem da perspectiva de que não é
possível elaborar uma teoria da pessoa completa, pois a pessoa está sempre em
processo, em mudança, é agora e ao mesmo tempo não é. Por isso buscou
compreender os modos de formação da personalidade nas condições concretas e
contextualizadas em que esse processo ocorre envolvendo de forma integrada os
aspectos afetivo, cognitivo e motor. (GALVÃO, 2005).
Wallon, em sua oposição a
Piaget sobre a dimensão social do psiquismo humano, assim explicita o seu
pensamento:
A vida intelectual pressupõe a vida
social. Seus instrumentos indispensáveis, [...] cabe destacar, em primeiro
lugar a linguagem, implicam a existência de um meio humano no qual foi
necessário que se elaborassem para serem comuns a todos. Entre suas condições
iniciais, figura a vida emocional, primeiro terreno das relações interindividuais
da consciência. Com a emoção surge a atividade que já não é resposta direta do
organismo aos estímulos do meio, mas a configuração plástica do aparato
psicomotor propiciada por situações exteriores. (WALLON, 1985, apud SMOLKA,
2002, p. 33).
Para esse autor o
desenvolvimento tem ritmo e dinâmica própria que resultam da atuação de
princípios funcionais, os quais se caracterizam como descontínuos marcados por
rupturas, retrocessos e reviravoltas. Considera a observação e a comparação
como adequados ao estudo da criança, contudo, de forma sempre contextualizada.
Não dissocia desenvolvimento biológico e desenvolvimento social, mas
considera-os de forma entrelaçada como condição um do outro. (ZAZZO, 1995).
Acredita que o
desenvolvimento humano é uma construção progressiva e envolve quatro campos
funcionais: a afetividade (emoções, sentimentos, paixões); movimento (ato
motor); inteligência ou conhecimento e a pessoa (o eu). Para Wallon, os
estágios tem uma ordem necessária, porém, seus efeitos podem ser alterados ou
transformados pelas circunstâncias sociais concretas de cada indivíduo. Outro
aspecto importante de ser citado é a compreensão do autor sobre o tônus
muscular, o qual não tem apenas função motora, expressa atitudes, posturas,
sentimentos, é um condutor das emoções.
Diante do exposto,
podemos dar ênfase ao fato de que, a construção de uma nova forma de
compreender a criança[2] foi sendo tecida nos mais
diversos contextos educacionais que eram criados e exigidos pela nova dinâmica
social – a criança ao ser retirada do contexto familiar e/ou de situações de
exploração e ausência de cuidados e colocada em instituições onde passa a
interagir com adultos e com outras crianças – converge, paulatinamente, para o
contexto de formas de intervenções mais elaboradas. Essas demandas do próprio
contexto social e das formas de organização para atendimento à criança pequena[3] vão sendo influenciada
pelas ideias desses educadores brevemente aqui esboçadas, cada um ao seu tempo
e dentro de um determinado contexto histórico, contribuíram de forma
significativa para a elaboração do pensamento pedagógico que respeite às
especificidades infantis, bem como foram definindo, um currículo para educação
da criança pequena e suas formas de efetivação no cotidiano das instituições de
educação infantil.
Considerando as contribuições supracitadas que foram delineando um
perfil de criança como ser histórico e social que se constitui e é constituída
pelas interações sociais, ser pensante, com competência e potencial de desenvolvimento
para diferentes capacidades – entre elas o pensar bem – desde que lhe sejam
dadas as oportunidades adequadas, é que propomos nesse artigo refletir e
apresentar algumas contribuições ao potencial da metodologia das Comunidades de
Investigação, propostas pelo filósofo Mattew Lipman, para potencializar o
desenvolvimento do pensar infantil.
O Desenvolvimento do Pensar e as Comunidades de Investigação
O presente estudo constitui-se na problemática do projeto de tese
apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Educação, DINTER UERJ/UERN, no qual
nos propomos investigar no cotidiano de escolas de Educação Infantil as
contribuições da metodologia de Comunidades de Investigação proposta por
Matthew Lipman como estratégia para o desenvolvimento do pensar bem no
cotidiano de escolas de educação infantil.
Partimos do pressuposto
que a natureza infantil é semelhante à natureza da filosofia. A criança é
curiosa, questionadora, está em busca de saber os “porquês” das coisas e dos
acontecimentos de seu cotidiano. Assim também é a natureza da Filosofia:
inquieta, em busca das razões que circundam a existência humana: a razão, o
belo, a verdade, a ética, a justiça, entre outros.
Mas, a partir de que idade é possível investir no
desenvolvimento do pensamento infantil? Para Lipman (2001, p. 86) “... é
extremamente difícil especificar as origens do raciocínio infantil”. Contudo, identifica
que a partir do aparecimento da fala infantil, essa vem associada à razões,
critérios e julgamentos para o que a criança está falando. O autor defende que
para desenvolver o pensar é necessário adquirir/exercitar algumas habilidades
tais como inferências, a criatividade, o crescimento pessoal e interpessoal, a
capacidade de encontrar sentido na experiência, descobrir e identificar
alternativas sobre os objetos e fatos, descobrir a imparcialidade, a coerência,
a capacidade de oferecer razões para as crenças, a globalidade, descobrir
situações e as relações parte-todo.
Possibilitar o desenvolvimento de tais habilidades
desde a mais tenra idade, é, segundo Lipman, investir no pensamento infantil
crítico, criterioso e cuidadoso apontando para a elaboração da reflexão.
Pensar nas habilidades, na proposta de Lipman, significa fundamentalmente
tentar perceber a capacidade da criança para a reflexão sobre o mundo e
seus significados potencializando seu desenvolvimento como criança e
posteriormente para a vida adulta. Analisando o Sistema Educacional da década
de 60, Lipman (1990) afirma que as atividades desenvolvidas com as crianças são
realizadas através de exercícios repetitivos e monótonos com papel e caneta,
voltados para a memorização, as quais não geram entusiasmo nas crianças.
Contudo, aponta que as crianças deveriam ser encorajadas à discussão, pois essa
“... aguça o raciocínio e as habilidades de investigação das crianças como
nenhuma outra pode fazer.” (Idem, Ibidem, p. 41).
Embora Lipman reconheça que o pensar é natural,
argumenta, que, diferente de outras habilidades naturais, esse pode ser
aprimorado: “O pensar é natural mas também pode ser considerado uma habilidade
passível de ser aperfeiçoada (LIPMAN, 2001, p.34). Implica dizer, que existem
pensamentos com habilidade e pensamentos sem significado e que desde que
sejam dadas as oportunidades adequadas, as crianças podem desenvolver
continuamente e cada vez mais e melhor o seu pensar. Analisando a presença da
Filosofia nas escolas em vista de uma educação plena, Lipman (1990, p. 34)
afirma que: “ ... o maior desapontamento da educação tradicional é o seu
fracasso em produzir pessoas que se aproximem do ideal de racionalidade.”
Lipman recebeu significativas influências do
pensamento de John Dewey. Esse autor considera que a constituição do pensar
independe da idade. Inicia-se com a experiência, ou seja, para pensar sobre
algo, o indivíduo necessita ser colocado no interior de uma situação que o leve
a agir, a mobilizar-se mentalmente sobre o fato .... Em consequência desse
contato “... o ato de pensar requer idéias. (sic). Após o contato do educando
com os dados de sua própria experiência e da experiência dos outros, tem-se o
momento da inferência, do salto para o desconhecido, da inventividade.
Revela-se, então, a face criativa e original de todo ato de pensar...” (CUNHA, 2005,
p. 54).
Também a Psicologia Educacional percebe a
importância do pensar sobre o pensar, identificando três importantes aspectos
dentro do papel educacional: o papel dos atos mentais (admitir, supor,
concordar, estimar, conjecturar, relembrar); o papel dos metacognitivos (saber
que se lembra, admitir que se sabe); o papel dos atos meta-afetivos (querer,
desejar, ou esperar amar) e por fim, o papel dos atos mentais correspondentes
(entre outros, meu inferir que você infere). Nesse movimento constante e
contínuo, vivenciado dentro das Comunidades de Investigação, é que é possível
ao pensamento a autocorreção. (LIPMAN, 1990).
Na visão de Lipman (2001), a quantidade de
inferências que as crianças fazem no meio em que vivem não têm limites para
ampliar o significado das situações com as quais interagem. Essa capacidade,
quando bem aproveitada, interfere diretamente no processo do pensar infantil. Nesse
sentido, “Filosofia para crianças deveria incentivá-las a fazer melhores
inferências, ajudá-las a identificar a evidência é a reconhecer as inferências
incorretas.” (LIPMAN, 2001, p. 93). Desse modo, afirma:
Naturalmente,
quanto mais facilidade as crianças têm em fazer inferências, mais significados
serão capazes; de extrair daquilo que leem. E isso, por sua vez, tornará
a sua leitura mais satisfatória. E quanto mais satisfeitas ficarem com o que
leem, mais continuarão lendo - seja para se distrair, seja porque gostam, ou
seja para compreender. (LIPMAN, 2001, p. 39).
Dessa forma, Lipman (1990, p. 37) aponta que
existem razões suficientes para que as salas de aulas sejam transformadas em
Comunidades de Investigação, definindo investigação como: “... a perseverança na
exploração autocorretiva de questões consideradas, ao mesmo tempo, importantes
e problemáticas.” O conceito de Comunidade de Investigação é inspirado nos
escritos de Peirce, o qual se inicia com a dúvida e não tem respostas prévias
para as questões que surgem, sendo que:
A partir do confronto com a experiência começa um
processo de investigação coletivo que procurará fixar uma crença que acalme
aquela dúvida. Uma vez estabelecida uma nova crença, porém, ela será submetida
a uma contra-argumentação ou a uma nova prova empírica que a colocará em
questão. (KOHAN, 2008, p. 29).
__________
Lipman vê com bons olhos esses elementos da
concepção peirceana do processo de conhecimento científico, sua ligação a uma
comunidade de sentido e significado, o caráter falível do conhecimento, a
afirmação dele como um espaço de busca e a necessidade de ‘limpar obstáculos’
do caminho da investigação [...]. Para Lipman, a filosofia é uma investigação
sem limites determinados. (idem, ibidem, p. 31).
Lipman enfoca na filosofia para crianças, efetivada
através das Comunidades de Investigação, que as situações vivenciadas
possibilitem o exercício da conversação, a reflexão, o questionamento sobre
posições inválidas ou não suficientemente compreendidas. Esse é o caminho que
propõe a filosofia na infância acreditando que fará “... com que as crianças
explorem seus próprios pensamentos e experiências por meio do uso de técnicas
filosóficas extraídas da inesgotavelmente rica, tradição filosófica”. (LIPMAN,
2001, p. 92).
Considerando o que Lipman afirma acima, a filosofia
é o meio pelo qual, a criança pode participar do exercício de conversação e
descobrir na sua fala, na fala de seus colegas e do (a) docente, quanto está
fazendo inferências corretas ou incorretas, para desse modo ir incidindo no seu
processo de pensar, desenvolvendo um pensar cada vez mais crítico e criterioso.
Sendo assim, “... a abordagem adotada nesse programa supõe, que o pensamento
lógico pode ser incentivado por meio de atividade criativa, que a criatividade
pode ser alimentada pelo desenvolvimento da capacidade lógica.” (LIPMAN, 2001,
p. 84).
Lipman (1990; 2001) propõe que seja vivenciada a
filosofia com crianças como uma prática, um fazer.
Sobre esse aspecto Kohan (2008, p.15) identifica que: “Deve-se entender,
portanto, a expressão filosofia para crianças
(sic) nesse primeiro sentido, como uma tentativa de levar a prática da
filosofia às crianças, tentativa de tornar a história da filosofia acessível
para que às crianças filosofem com ela.”
Para isso, Lipman, elabora um currículo específico
proposto através de Novelas Filosóficas[4]
com temas tais como: a ética, o belo, o bem, a verdade, a justiça, entre
outros, em forma de diálogos a serem desenvolvidos com as crianças no espaço
institucional. Considerando a especificidade do espaço institucional é
necessário pensar como deverá ser o docente para atuar em tal proposta. Qual
seu perfil? Qual sua formação? Lipman (1990) afirma que:
... os professores devem ser ensinados exatamente
pelos mesmos procedimentos que eles usarão em sala de aula. Se nelas são
desejáveis as discussões e as aulas expositivas são destetáveis, então deveria
haver nas escolas de educação o máximo de discussão e o mínimo de exposição.
(LIPMAN, 1990, p. 45).
O docente para atuar dentro das Comunidades de
Investigação necessita de uma formação específica. Lipman esclarece sobre a
insuficiência da formação ofertada nos cursos de licenciaturas dentro das
academias, identificando que nem mesmo a Licenciatura em Filosofia viabiliza a
formação necessária para a especificidade da filosofia na infância.
...
às vezes os professores tem cursos de filosofia da educação. [...]. Mas tais
cursos são inúteis no que se refere a preparar o professor para incentivar as
crianças a pensarem filosoficamente. Um curso universitário de filosofia não
prepara o professor para traduzir conceitos e a terminologia da filosofia de
uma maneira que as crianças possam entender. (LIPMAN, 2001, p. 74).
Nesse sentido Lipman compreende que é necessário o
professor passar por uma experiência de formação na qual ele – o professor –
irá vivenciar metodologicamente o mesmo processo mediador que desenvolverá
posteriormente com seus alunos. Assim propõe que a formação do docente ocorra
dentro do Centro Brasileiro de Filosofia para Crianças – FpC através de
seminários e oficinas organizados em quatro estágios, respectivamente: 1) o
preparo de monitores, 2) o estágio de exploração do currículo, 3) o estágio
modelador e, 4) o estágio de observação.
O primeiro estágio formativo refere-se à formação de uma equipe de
professores formadores, os quais irão preparar os futuros professores para
atuarem junto às crianças. Esses são chamados monitores, e necessitam ter um
“sólido conhecimento filosófico” (LIPMAN, 2001, p. 176). O estágio dura de dez
a quatorze dias, nos quais os monitores conhecem o currículo, tiram dúvidas, e
tem uma experiência direta com crianças “para estabelecer a credibilidade junto
aos professores”. (LIPMAN, 2001, p. 177); o segundo estágio, exploração do
currículo, nesse estágio é utilizada a mesma metodologia a qual o professor
trabalhará com as crianças. Organizam-se grupos por nível, tais como professores
do quinto e sexto ano ou do terceiro e quarto. Sempre que possível
possibilita-se estratégias que possam oferecer o conhecimento do currículo como
um todo, para além do ano em que o professor atuará, pois se acredita que
“Quanto mais os professores estiverem inteirados do currículo todo, mais
perspicácia terão para abordar qualquer parte dele.” (Idem, Ibidem).
No terceiro estágio, etapa de modelação, os monitores vão às salas dos
professores em formação e realizam sessões modeladoras, ou seja demonstram, na
prática, como desenvolver uma aula de filosofia com crianças. Já o último
estágio, que se refere ao período de observação, ocorre após seis meses de
execução da proposta junto às crianças. Os professores monitores retornam às
salas dos professores em formação e mediante critérios avaliativos analisam os
progressos e prestam esclarecimentos.
Nesse sentido, mediante a adequada
formação do professor, esse poderá efetivar nos espaços escolas uma educação
filosófica que levará as crianças a desenvolverem uma capacidade que lhes é
inerente: o pensar de ordem superior. Para isso torna-se necessário o
desenvolvimento das habilidades de investigação, tradução, raciocínio, de
formação de conceitos, autocorreção, dentre outras defendidas por Lipman (2001).
Dentre
os objetivos do programa lipmaniano de habilidades de pensamento, um dos
aspectos ressaltados é o desenvolvimento do juízo, posto que as crianças
dotadas de tais habilidades, serão capazes de escutarem melhor, estudarem
melhor, aprenderem melhor e a se expressarem melhor, ou seja, produzirem seus
próprios julgamentos em relação a uma problemática, fundamentar melhor suas
ideias e questionarem as opiniões de outrem.
Lipman (2001) identifica sete tipos de
pensamentos a serem instigados em sala de aula, são eles: Pensamento autônomo;
Pensamento reflexivo; Pensamento crítico; Pensamento rigoroso; Pensamento
radical; Pensamento abrangente e Pensamento criativo.
Nesse
sentido, a criança que adquire competências nas habilidades de pensar não é
simplesmente uma criança que cresceu, mas uma criança que teve sua capacidade
de crescer ampliada, visto que “... os homens que não pensam perderam a
habilidade de conhecer ...” (LORIERI, 2002, p. 93). Nesse sentido, Lipman (apud KOHAN, 2008, p. 47)
assevera a validade de implantação de uma proposta de filosofia para crianças
visto que essa aponta diretamente para o desenvolvimento e aperfeiçoamento da
capacidade de pensar infantil, tendo o potencial de trazer significativas
contribuições pessoais e sociais, pois que ao terem a oportunidade de se
exercitarem na Filosofia para Crianças, mediante a metodologia das Comunidades
de Investigação, “... não se educa apenas para o pensar, mas para o pensar de
ordem superior, e não só se educa para o pensar de ordem superior, se educa
para uma cidadania democrática.” (idem, ibidem).
Considerações Finais
A reflexão proposta nesse
artigo parte da concepção de criança como sujeito em formação, com competência
própria, ser atento e observador, encontrando em todos os momentos de sua vida
necessidades de questionamentos para compreender os “porquês” formulados por
elas mesmas diante dos fatos cotidianos. De acordo com Lipman (2001) as
crianças anseiam por uma vida repleta de experiências ricas e significativas.
Todavia para tal, é preciso mais do que um ensino verbalista, de acúmulo de
conhecimentos, é necessário um ensino voltado ao desenvolvimento das
competências do pensar, tal como assevera Lipman (apud DANIEL 2008, p. 20): “...
se a educação se ocupa com o destino do pensamento humano, ela deve ensinar às
crianças ‘como’ pensar, e não ‘em que’ pensar”.
Sendo assim, para que às crianças, tenham a possibilidade
de aprenderem a pensar criticamente, e de forma reflexiva, criativa e autônoma,
identifica-se na metodologia defendida
por Lipman uma possibilidade e um desafio no fazer filosofia para crianças. O
mesmo propõe que as salas de aulas tornem-se em Comunidades de Investigação,
pois que “... sem comunidade, não existiria verdade, nem realidade, nem
indivíduos. A comunidade é a condição de possibilidade do ser e de conhecer o
que existe.” (KOHAN, 2008, p. 30). Tal metodologia, têm, na visão de Lipman, o
potencial de desenvolver nas crianças e jovens as habilidades de pensamento,
que se traduzem na capacidade de investigação, na elaboração de conceitos, nas
habilidades de raciocínio e tradução.
Este paradigma de investigação e de organização
pedagógica transforma o espaço educacional desde seu espaço físico até a forma
de conduzir o diálogo investigativo, no qual a aprendizagem se dá na parceria,
onde os envolvidos sentem-se em uma comunidade, em que todos se tornam
investigadores, construindo sobre as ideias uns dos outros, pensando com autonomia,
explorando suas pressuposições, trazendo para suas vidas a percepção do que é
descobrir, inventar, analisar e criticar coletivamente.
A alma da Comunidade de Investigação é a prática
dialógica, a partir da qual Lipman (apud KOHAN 2008) propõe um trabalho
dialógico-investigativo, realizado por grupos de alunos, com a coordenação de
um professor, a fim de juntos construírem respostas e questões acerca de suas
experiências problematizadoras de mundo, assim como, a exposição de seus pontos
de vistas e a internalização de determinadas habilidades, tais como: as
habilidades de raciocínio, autocorreção, escuta, respeito mútuo, entre outras.
Entretanto, o diálogo não pode ser
compreendido apenas como uma estratégia pedagógica, mas sim um princípio
educacional. Deste modo, é mister ressaltar, que a proposta apontada por Lipman
(apud KOHAN 2008) de fazer filosofia em sala de aula a partir do diálogo
investigativo, não quer dizer que tal prática restrinja-se, apenas ao exercício
da retórica, ou do simples ato de conversar, pelo contrário, ela deve estar
disciplinada pela lógica, num movimento investigativo comunitário onde os
envolvidos são desafiados a construir individual e coletivamente, num processo
reflexivo de construção do conhecimento, a partir do qual as crianças vão
aprendendo a distinguir um pensamento bom do ruim.
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[1] Mestra em Educação/UFRN. Profa. do
Curso de Filosofia da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte-UERN,
Campus Caicó. Membro do Grupo de Pesquisa Filosofia e Educação/UERN. Doutoranda
do Programa de Pós-Graduação em Educação-PRODEp/UERJ. Orientador:Prof.
Dr.Walter Omar Kohan
[2] O termo “criança” é definido na
Lei n. 8.069 (BRASIL, 1990), como a pessoa até 12 anos.
[3] A expressão “crianças pequenas” é
utilizada nesse artigo para definir as crianças dentro do nível educacional de
zero a cinco anos amparado pela Lei n. 11.274 (BRASIL, 2006).
[4] Constituída de oito novelas, o
currículo criado por Lipman e seus colaboradores são diálogos entre crianças,
professores, pais e vizinhos. Elaborou também manuais que acompanham as
“Novelas”, os quais propõem exercícios e planos de discussão. Os temas abarcam
desde a educação infantil até o ensino médio. (KOHAN, 2008).
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