segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Justificativa

Sabemos das dificuldades em se tratando de “filosofia para crianças”, devido os vários preconceitos que perpassam centenas de anos desde o surgir da filosofia há mais de 25 séculos. O que vemos no contexto da filosofia, a princípio, é a chamada “akmé”, isto é, o ponto alto da maturidade do saber filosófico o que só era possível entre os 40 e 50 anos. Temos assim, uma visão elitista de que o verdadeiro filósofo teria que passar anos a fio nessa preparação progressiva para a maturidade no saber.

Há na Grécia Antiga grande preocupação com a educação das crianças, porém, do ponto de vista da época na forma aristocrática em vistas a serem moldadas para assemelharem-se aos adultos. Neste ângulo vemos que se preocupavam com a educação infantil. Por vezes, percebemos o chamado “tempo certo” para a prática filosófica e a seleção dos melhores, especialmente os ligados à aristocracia para poderem prosseguir na educação que os faziam “filósofos”. (PLATÃO, 1996).

A “Maiêutica” socrática” (CHAUÍ, 2001), tem enorme vantagem na aplicação com crianças, nela está contido o filosofar e o educar. O primeiro por não estabelecer verdades prontas, o que faz com que a filosofia seja uma construção do saber; e o segundo por Sócrates não se considerar professor e mesmo assim era mestre na arte de educar de forma construtiva no fomentar do conhecimento.

Atualmente certas restrições, apesar de se fazerem presentes, já são bem menores do que no princípio. Somente em séculos mais recentes (séc. XVI – XVII), presenciamos possibilidades de as crianças exercitarem o pensar mais apurado. Uma filosofia compreendida na perspectiva de que todos os humanos filosofam por se defrontarem com problemas e questões do mundo em que estão inseridos. Assim, questões como: “Quem sou?”, “O que é o mundo?”, “Para onde vamos?” São questões próprias da existência humana.

Alguns filósofos mais recentes tiveram postura bem crítica com relação a essa impossibilidade de se fazer filosofia. Desde Comenius e sua preocupação de que o conhecimento e a educação deveriam trazer a realização do ser humano e a felicidade eterna, passando por Rousseau (Obras Completas, 1969), que percebe a distinção do entre a criança e o adulto, discutindo o papel da educação da criança e esta relação: Criança – Adulto – Sociedade, concebendo a reflexão filosófico-pedagógica centrada na infância. Se na antiguidade, para Platão (Diálogos, s/d) e Aristóteles (Metafísica,1969) a “admiração, o espanto e o perguntar” estão no princípio da filosofia, identifica-se já o espaço para uma filosofia com crianças que é quem melhor exercita tal procedimento que vem de encontro à filosofia. Porém, na modernidade é com Descartes (Meditações Metafísicas, 1983) e (PASCAL, G.,1990) que o caminho filosófico poderá estar no exercício da “dúvida metódica”, utilizando as armas céticas para chegar à evidência da verdade.

Os adultos têm opiniões “prontas”, “acabadas” e cheias de “preconceitos” e “pré-noções” fossilizadas, o que será bem mais difícil para que assumam a postura de um “não-saber” Socrático que é a consciência de estar aberto ao aprendizado permanente; a da “dúvida cartesiana” que questiona, pois, diferentemente, são as crianças que estão sempre em atitude de aprendizado.

Considerando esses pressupostos filosóficos, na atualidade, é nos espaços educativos institucionalizados onde as crianças têm possibilidades de aprendizagem, desenvolvimento e interação por uma significativa etapa de suas vidas. Assim, a educação básica, aqui considerada nos níveis de educação infantil e ensino fundamental, é reconhecida pela legislação pertinente, pela produção científica e documentos oficiais do Ministério da Educação – MEC, como etapas em que as crianças se desenvolvem e aprendem conceitos, valores, atitudes e procedimentos. Tais pressupostos reconhecem a competência da criança desde recém-nascida, como um ser social, histórica, cidadã, em desenvolvimento (PIAGET, 2003; 2006a; 2006b), com características e necessidades próprias (WALLON, 1975; 1995) – diferenciadas das dos adultos - e compreende que a possibilidade de apropriação de conhecimentos próprios da cultura se faz presente nas interações sociais (VIGOTSKY, 2001; 2003; 2006) que ocorrem, entre outros contextos, nos espaços das instituições educativas contribuindo para o desenvolvimento da identidade e autonomia das crianças. Esses argumentos são amparados no Referencial Curricular Nacional para Educação Infantil – RCNEI (BRASIL, 1998) e pelos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN (BRASIL, 2001), quando apontam que as instituições educacionais devem possibilitar às crianças e jovens o desenvolvimento da autonomia, convivência com a diversidade, interação e cooperação, bem como acesso às diferentes formas de linguagens como expressão da cultura e cidadania.

Contudo, os índices de avaliação dos últimos anos (SAEB e IDEB) têm demonstrado que nem sempre essa realidade se efetiva nas instituições de educação básica, sendo identificada a transmissão de conteúdos sistematizados que embora de suma importância para aprendizagem e desenvolvimento das crianças não são por essas significados, predominando, na maioria das vezes, práticas espontaneístas e vazias e/ou fortemente marcadas pela perspectiva precoce de escolarização das crianças, em detrimento das necessidades mais significativas e potencial global que apresentam para seu desenvolvimento pessoal e social – cognitivo, lingüístico, lúdicas, socioafetivas, corporais, dentre outras. Práticas de repetições e tarefas esteotipadas que não desafiam os níveis cognitivos em que as crianças se encontram e pouco contribuem para a construção do pensamento reflexivo-crítico.

Essa constatação nos remete à proposta do filósofo e educador norte americano Matthew Lipman que preocupado com as dificuldades de seus alunos em elaborar raciocínios e inferências lógicas, propõe que as crianças se iniciem nesses exercícios desde a mais tenra idade. Nesse sentido, assim afirma: “Nada tão condescendente. Deveria ser algo que os pequenos descobrissem por si mesmo, com pouca ajuda dos adultos. [...] deveriam formar uma pequena comunidade de pesquisa, na qual cada uma participasse, pelo menos em alguma medida, na busca cooperativa e na descoberta de modos mais efetivos de pensar.” (LIPMAN, 1998, p. 22).

Assim, desde 1968, propõe que é possível às crianças através da Filosofia investigar, elaborar o pensar, compreender os sentidos múltiplos da linguagem como expressão da cultura na qual ela – a criança – já nasce inserida, educando-se para o bom julgamento, boas escolhas e boas relações sociais. Sua proposta apresenta-se em forma de diálogos entre crianças e adultos, nos quais as crianças são incentivadas a pensar sobre questões de cunho filosófico, tais como: lógica, ética, estética, política, linguagem, natureza, comparações, elaboração de perguntas, argumentação etc. (KOHAN e WUENSCH, 1998). Essas questões filosóficas aparecem como “questões de fundo” nas Novelas Filosóficas nas quais as crianças dialogam entre si ou são incentivadas a pesquisar por si mesmas buscando sentidos para os seus questionamentos e argumentos tendo em vista a reflexão crítica, o raciocínio lógico e coerente que enriquece e favorece o uso e a compreensão ampliada da linguagem, das vivências e inquietações, a elaboração conceitual, o desenvolvimento da observação, o respeito às diferenças, à construção da autonomia e o princípio da liberdade.

Sobre esses aspectos e considerando a filosofia como um legado que deve ser propiciado a todas as crianças, Sharp (1998, p. 18) assevera:

Quando observamos o mundo, percebemos muita injustiça, muita falta de liberdade, muito ódio em vez de amor, e nós gostaríamos de conceber e criar um mundo mais justo, mais belo, mais verdadeiro. Para isso, é necessário sabedoria e bom julgamento; precisa-se saber pensar e saber pensar bem, saber quais são aquelas opções; precisa-se, também, ser crítico, ser capaz de olhar as instituições da sociedade e perguntar se elas cumprem aquilo que deveriam fazer. E é indispensável ser criativo, colocando algumas sugestões sobre como as coisas poderiam ser melhoradas. Finalmente, é fundamental, também, pensar de modo ético, atencioso. Como pessoas, não nascemos dessa maneira, mas podemos ser educados desta forma.

Nessa perspectiva, a Filosofia, assume nesta ação extencionista sua dimensão social, na busca de espaços de elaboração e compartilhamento do saber filosófico, no compromisso com a interrogação filosófica e contribuição com a transformação social, bem como a necessidade de abrir novas possibilidades de articulação e sentidos entre a universidade e a comunidade na qual o Curso de Filosofia de Caicó está inserido.

Para tal desiderato, pretende sensibilizar e envolver alunos (as) atuais e egressos (as) do curso de filosofia, professores (as) da educação infantil e ensino fundamental do município de Caicó e do Curso de Filosofia do Campus do Seridó, a qual é pensada em três etapas: 1) fundamentação teórica; 2) análise de materiais pedagógicos disponíveis; 3) diagnóstico e divulgação junto às instituições de educação básica – infantil e ensino fundamental; 4) elaboração de proposta piloto de filosofia para crianças e confecção de materiais didático-pedagógicos; 5) vivência de experiência piloto junto a uma instituição de educação básica.

Além dos argumentos já apresentados, é mister referir nossas motivações pessoais e de envolvimento com essa etapa educacional: em nossa trajetória de formação inicial e continuada, e atuação docente (equipe proponente), estiveram/estão presentes a filosofia e a educação; em nossas experiências profissionais a educação básica esteve presente desde o início, e, posteriormente, como estudantes e pesquisadores (as) em nível de pós-graduação; ainda, como professores (as) formadores (as) de professores (as) em nível universitário, ao atuarmos em disciplinas filosóficas e pedagógicas/metodológicas de caráter teórico e prático nos aproximamos constantemente, tanto das discussões teóricas como dos problemas presentes na prática docente da educação básica – educação infantil e ensino fundamental - trazidos à tona por nossos (as) alunos (as) que já atuavam/atuam como professores (as) e também observados por nós enquanto professores (as) de estágio supervisionado, Metodologias do Ensino de Filosofia e/ou pesquisadores (as) das questões pertinentes a esse contexto educacional. Tais experiências despertaram-nos para a necessidade do exercício do pensar com crianças, vendo o grande campo onde se poderá vivenciar de forma significativa a prática do argumento e do questionamento peculiar nesta idade.

Mediante essas constatações nos questionávamos: seria possível desenvolver uma prática diferente? Quais experiências deveriam compor o dia a dia das crianças na escola de modo que as práticas ali desenvolvidas se convertessem em possibilidades realmente significativas de aprendizagem e desenvolvimento de suas potencialidades cognitivas, crítico-reflexivas e afetivas?

Esses questionamentos emergiram também à medida em que fomos nos aproximando, em nossas experiências formativas, da produção científica sobre a criança e sua educação, bem como da evolução do discurso legal e das definições político-pedagógicas para esse segmento materializadas nos documentos oficiais, bem como tomaram uma outra dimensão quando associada ao conhecimento filosófico dentro do contexto atual de atuação junto aos alunos do Curso de Filosofia de Caicó, levando-nos a vislumbrar e propor a vivência do Projeto de Extensão Filosofia na infância: identificando desafios – construindo possibilidades aqui proposto como espaço de construção, articulação de saberes e transformação do contexto social no qual se insere a ação da Universidade.